28 julho 2008

O protesto dos devedores de despesas de condomínio e aluguel.

A imprensa noticiou nos últimos dias a publicação de uma lei estadual paulista que permite o protesto do inadimplente de aluguel e de despesas de condomínio. Na verdade, examinando-se a Lei Estadual 13.160 de 21-7-08, percebe-se que ela cuida dos emolumentos (despesas) a serem pagos aos Cartórios de Protestos pelos devedores e, ao elencar os possíveis protestos, refere aluguéis, encargos de locação, despesas de condomínio etc.

Acontece que, desde a edição da Lei Federal 9.492/97, já era possível tirar protesto desse tipo de dívida. É que o artigo 1º daquela lei diz: “Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”
O protesto, por tradição, tinha uma estreita ligação aos atos do comércio, de modo que eram basicamente os títulos de crédito que podiam ser protestados, tais como a duplicata, a nota promissória, a letra de cambio e também o cheque. No entanto, o final da redação do artigo 1º que acima transcrevi alargou bastante o objeto do protesto. A norma trata dos títulos e depois estampa: “e outros documentos de dívida”.

Pergunto: que outros documentos seriam esses? Respondendo a essa pergunta, a Corregedoria de Justiça do Estado de São Paulo, já em 04-04-2005, aprovou parecer normativo que permite o protesto de “todos os títulos executivos judiciais e extrajudiciais” previstos na legislação processual. Indo ao Código de Processo Civil, verifica-se que lá estão indicados, entre os títulos executivos extrajudiciais, os créditos decorrentes de aluguel e despesas de condomínio.

Logo, não resta dúvida da possibilidade da lavratura do protesto nesses casos. Aliás, por conta disso, e em função do estabelecido na lei federal, é possível afirmar que o protesto pode ser feito em qualquer lugar do país. É bom lembrar que uma boa parte dos títulos enviados a protesto não tem qualquer relação com garantia de direitos do credor, mas sim com um modo fácil de cobrança. Com medo do protesto, os devedores correm para saldar suas dívidas. Mas, penso que se, realmente, se generalizar esse tipo de medida por parte dos credores de aluguéis e despesas de condomínio, surgirão alguns problemas de ordem prática. Vejamos.

Primeiramente, anoto que o credor do aluguel (o locador) ou da despesa de condomínio (o próprio condomínio) não precisa do protesto para cobrar a dívida. A ameaça de ajuizamento de uma ação de despejo por falta de pagamento ou o ajuizamento efetivo é muito eficaz contra o inquilino inadimplente, que corre o risco de ser despejado. E se é para tornar pública a inadimplência, basta a ajuizamento da ação, que nos dias que correm é anotada não só no Distribuidor Forense, que é público por natureza, como no cadastro da Serasa.

Além disso, é relevante colocar que a remessa ao Cartório de Protesto aumentará o valor da dívida e, talvez, pior: aumentará o número de demandas judiciais, na medida em que o devedor poderá ingressar com medida judicial cautelar de sustação de protesto. Nesse caso, então, do ponto de vista prático a tentativa do protesto pode lhe favorecer. Explico. Ao receber o aviso do Cartório, ele poderá requerer a sustação do protesto (depositando ou não o valor em Juízo) e, na seqüência, como ordem natural do sistema processual, é ele, devedor, que ingressará com ação contra o credor para declarar que nada deve. Conclusão: quem terá ação ajuizada contra si e tornada pública pelo sistema de registro de dados, será o credor. Que vantagem ele leva em querer protestar o devedor? (Não entrarei nos detalhes das alegações do devedor para ingressar com a ação de sustação de protesto, mas certamente haverá motivos justos, como, por exemplo, dizer que não concorda com o valor lançado como despesa de condomínio ou que ele tinha tentado pagar o aluguel, mas foi o credor ou a imobiliária que não recebeu ou outros tantos possíveis que certamente surgirão).

É claro que o credor poderá, de sua parte, promover ação para cobrar a dívida ou pleitear o despejo. Mas, só por isso, percebe-se o aumento de problemas e não a solução, pois haverá duplicidade de demandas judiciais, sem necessidade.

A situação é parecida em relação à despesa de condomínio com alguns elementos a mais. A despesa aumentará e a inversão processual também poderá ocorrer. Mas, despesas de condomínio tem outra peculiaridade: O devedor já é suficientemente pressionado, pois todos os demais condôminos sabem do atraso no pagamento, na medida em que recebem os relatórios da administração e/ou do síndico. É bastante constrangedor ir e vir da própria residência. E se mesmo assim ele não paga, das duas uma: realmente não tem como pagar e será fatalmente protestado (e, repito, à toa) ou pode pagar, e nesse caso, a ação de cobrança seria já suficiente. Mas, também aqui vislumbro o pior: o devedor honesto, constrangido e que pretende pagar as despesas de condomínio, com o protesto terá mais dificuldade de fazê-lo porque nem mesmo um empréstimo bancário conseguirá obter, visando saldar sua dívida. O protesto é automática e sucessivamente anotado nos cadastros dos Serviços de Proteção ao Crédito SPCs), como, por exemplo, o da já citada empresa privada Serasa.

Penso que os locadores de imóveis e os síndicos devem pensar bem, antes de remeter esse tipo de dívida ao Cartório de Protesto. E, aliás, deverão conversar com os gerentes das imobiliárias que administram seus aluguéis e despesas, porque se o devedor ingressar com ação judicial, conforme acima exposto, eles é que figurarão no pólo passivo da demanda, com seu nome lançado no Distribuidor Forense. Eles serão os réus.

E, há mais. Uma vez protestado, o devedor será automaticamente negativado nos SPCs, como disse. Feito o pagamento pelo devedor e, eventualmente, cancelado o protesto, pode acontecer dele continuar negativado nos cadastros de inadimplentes. Pois bem. Apesar de alguma controvérsia, anoto que cabe ao credor a responsabilidade pela retirada do nome do devedor que pagou sua dívida do cadastro de inadimplentes. Se ele não providenciar a “limpeza”, pode sofrer ação de indenização por danos morais por parte do devedor. Acontecerá o mesmo se, por algum motivo, o protesto e/ou a negativação forem feitos em valores indevidos.

Conclusão: Ganham os donos de Cartório, mas perdem as pessoas que por problemas os mais diversos tornam-se inadimplentes eventuais e também o Judiciário, eis que, fatalmente, haverá novas ações judiciais em função desse tema.

21 julho 2008

Vai comprar móveis? Veja os cuidados que você deve ter.

Hoje trato de um assunto que aparentemente não apresenta complicação para as compras, mas que tem trazido transtornos os mais diversos ao consumidor. São inúmeros os problemas existentes e muitas as reclamações contra vendedores de móveis em geral. Veja.

Para a compra começar com o pé direito, a primeira coisa a fazer é medir detalhadamente o espaço que você vai utilizar. Faça um desenho numa folha de papel, com o formato do cômodo (sala, quarto, cozinha, banheiro etc.) e transcreva as medidas encontradas.

Depois anote os espaços livres e os que já estão ocupados e não esqueça de demarcar os espaços das janelas e portas abertas. Marque no desenho da parede o espaço ocupado pela janela e a altura do parapeito ao chão. Essas medidas são fundamentais para que você, uma vez estando na loja, possa procurar o móvel desejado.

Não deixe de considerar também o espaço ocupado pela abertura das portas dos armários, das gavetas, da porta da geladeira etc. Pense na localização dos pontos de luz com relação ao móvel que você vai comprar.

Se você quer uma mesa com iluminação em cima, examine a posição do ponto de luz e a fixação do lustre. Lembre-se dos espaços reservados aos vãos que devem ser deixados entre os móveis e a parede. É importante deixar um espaço para ventilação, o que evita a formação de umidade e o surgimento de manchas na parede.

Ainda em relação aos móveis, considere largura e altura das portas de entrada (especialmente a de serviço) e se você mora em prédio de apartamentos, meça a largura, a altura e a profundidade do elevador de serviço, assim como da escada de acesso ao apartamento.

Pode acontecer de o móvel ser adequado para a sala, mas não poder entrar, porque não cabe no elevador, nem há espaço na escada ou não passa pela porta. Se não couber, pergunte sobre a desmontagem e a remontagem. Prefira que o móvel seja sempre montado pelo técnico da loja, a não ser que seja bastante simples e fácil de montar. É verdade que o móvel pode ser içado pelo lado de fora do prédio, mas nem sempre dá, pois às vezes ele também não entra pela janela.


Não confie em “golpe de vista”

Só saia para comprar móveis depois de efetuar essas medições. É comum a compra de móvel que não cabe no espaço do ambiente. Não confie no seu “golpe de vista”. É fácil errar, pois nas lojas os espaços são geralmente maiores que em casa, o que dificulta o “cálculo” visual.

Cuidado com a emoção

Estando na loja, leve tudo em consideração, racionalmente. Teste a resistência do móvel: apóie-se nele, deite-se, sente-se etc. Cuidado com os móveis pontudos e com quinas e sua localização no ambiente: em lugares estreitos eles não são recomendáveis, pois podem machucar. Se você tiver criança em casa, pior ainda. E nesse caso inclua como item perigoso tampos e pontas de vidro.

Na compra de camas e colchões, observe as medidas-padrão que existem no mercado. Atualmente, existem vários tamanhos fora da medida padrão. Não se esqueça de comprar cama e colchão compatíveis.

Lençóis, cobertores, edredons e protetores de colchão são encontrados nas medidas-padrão. Meça sua cama ou a cama que você for adquirir, antes de comprar o colchão e os lençóis e edredons. Para camas com medidas especiais, às vezes os colchões precisam ser encomendados, assim como os lençóis e edredons. Atualmente já há muitas lojas que trabalham com produtos em medidas fora do padrão, mas não se esqueça de ter certeza das medidas para saber se cabe.

O que deve constar do pedido e/ou nota fiscal

Preste atenção no pedido feito na loja. Ele pode ser já a nota fiscal de venda, geralmente feita quando existe o produto em estoque ou pedido impresso (nesse caso a nota fiscal terá que ser entregue junto com o pedido). Dele deve constar:
a) a descrição detalhada de cada móvel adquirido e/ou encomendado;
b) a identificação com as medidas de cada produto. Se o móvel puder ter divisões diversas, suas medidas devem constar do pedido;
c) o nome do fabricante do móvel;
d) o preço e a forma de parcelamento, com especificação da entrada e os valores e datas das demais parcelas;
e) a forma de pagamento do preço: cheque pré-datado, aviso bancário, carnê etc. Em caso de cheque pré-datado, deve constar do pedido o número e os valores dos cheques entregues, com a data em que eles serão apresentados ao banco.
f) a data de entrega;
g) o preço do frete, se o mesmo for cobrado. Se não for, deve constar: “preço do transporte de entrega incluso”;
h) especificação quanto a montagem, quem a fará e quando, e se o preço está incluído;
i) a garantia do fabricante, quando ela é oferecida.

Se o fabricante não der nenhuma garantia, fica valendo a prazo legal de 90 dias para reclamação, contados da entrega do móvel.

Recebendo o móvel

Quando receber o móvel em casa, cheque o produto entregue contra as especificações do pedido e/ou nota fiscal em seu poder. Se o produto não conferir, não o aceite. Se preferir aceitar, solicite uma nova nota fiscal com especificação adequada à realidade do produto; assine no canhoto da nota fiscal de entrega somente após a conferência e coloque a data. O prazo de garantia se inicia nesse dia. Se o móvel não conferir com o que está na nota, escreva isso na nota, na frente ou no verso.

Não aceite a entrega do produto sem a nota fiscal. E, como sempre, guarde a cópia do pedido e/ou a nota fiscal. Qualquer problema, acione imediatamente um órgão de defesa do consumidor ou um advogado de confiança.

O prazo de entrega

Se a loja não entregar o móvel adquirido no prazo marcado no pedido e/ou nota fiscal, você pode:
a) desistir do negócio, suspendendo os próximos pagamentos e requerendo a devolução do que já foi pago em valores corrigidos;
b) dar novo prazo para entrega;
c) aceitar outro produto equivalente no lugar do encomendado;
d) ingressar com reclamação nos órgãos de defesa do consumidor ou com ação judicial, para que a loja entregue o produto.

Em qualquer hipótese, você deve primeiro:
a) certificar-se por telefone ou pessoalmente das razões do atraso. Se a explicação for convincente e o novo prazo oferecido não for exagerado, talvez valha a pena esperar;
b) superado o contido na letra anterior, sem que o móvel tenha sido entregue, você deve notificar a loja através de Cartório de Títulos e Documentos, desistindo do negócio, suspendendo os próximos pagamentos e requerendo a devolução do que já foi pago em valores corrigidos. Nesse caso, você deve procurar um órgão de defesa do consumidor ou um advogado de confiança.
Aja da mesma forma se o móvel for entregue desmontado e o montador não aparecer no prazo.

14 julho 2008

Produto importado. Nem sempre vale a pena comprar. Veja os cuidados que você deve tomar.

Nesta época de férias com viagens ao exterior, muita gente aproveita para encher a mala de produtos importados. Além disso, como são cada vez maiores as facilidades para compras pela Internet, o setor de importações diretas do exterior tem crescido enormemente. Tudo bem. Escrevo hoje para explicar como fazer esse tipo de compra com segurança e também porque evitá-la.

• Prefira produtos feitos aqui
Há ainda na memória do brasileiro a imagem de que produto importado é sempre melhor que o nacional. Isso não é mais verdade. Temos no Brasil produtos e serviços que são similares, iguais e melhores que os importados. Aliás, vários de nossos produtos são exportados e concorrem no exterior com os produtos dos fabricantes locais. Por isso, é preciso cautela quando se pretende adquirir um produto importado.

• Equívoco
Certa vez, li uma carta de um consumidor brasileiro que morava em outro país reclamando de um banco brasileiro, porque ele havia mandado uma importância em moeda estrangeira para ser creditada pelo sistema bancário, aqui no Brasil, em cruzeiros (moeda da época), na conta de seu filho. O dinheiro não chegara e ele punha a culpa no banco brasileiro. A remessa havia sido feita através de um banco do país estrangeiro, no local onde ele residia, e ele protestava veementemente contra o mau serviço prestado pelo banco aqui no Brasil.
Percebi, ao ler a carta, que em nenhum momento o consumidor havia levantado a hipótese de que o defeito fosse de origem, isto é, de que a falha na transferência fosse um problema local, do Banco em que ele compareceu para enviar o dinheiro, e não do banco situado aqui no Brasil.
Ora, os fornecedores brasileiros não são os únicos a oferecer produtos e serviços com vícios e defeitos. No estrangeiro há também muitos problemas.
Conto isso, apenas para ilustrar como ainda anda o imaginário nesse assunto. É preciso que o consumidor contenha o seu entusiasmo, pois nem sempre é um bom negócio comprar produtos importados.
Antes de adquiri-los, é preciso checar preço (em moeda corrente); qualidade e durabilidade, tendo em vista peças de reposição existentes aqui; garantia no país; serviço de assistência técnica, etc. Veja a seguir item por item.

• O problema do preço
O aspecto “preço” envolve mais componentes do que apenas o valor pago diretamente pelo produto. Logo de início, nas compras feitas no exterior, por exemplo nos Estados Unidos, são acrescidas as taxas (impostos), que nem sempre aparecem no preço.

• Preço do frete
Ainda quanto ao preço, nas compras via correio ou através da Internet, é preciso descobrir se o valor cobrado pelo frete está incluído. Se a procura é de um produto estrangeiro mais barato, às vezes o custo do frete inviabiliza a compra, pois pode deixa-lo mais caro que o similar nacional.

• Sem garantia
Não se esqueça que produtos adquiridos no exterior, pessoalmente, através dos correios, ou pela Internet, não têm garantia legal no Brasil. Esse item é muito importante.
Se você adquirir um bem que venha a apresentar defeito de fabricação, pode perdê-lo, pois a reclamação teria que ser feita no exterior para o vendedor ou fabricante local. Ainda que o nome do fabricante estrangeiro seja o mesmo do instalado no Brasil, a garantia conferida no exterior só tem validade aqui se sua filial ou o representante estabelecido expressamente concordar, algo que não ocorre. (Há discussões no Judiciário brasileiro a respeito desse assunto, sendo que num caso isolado o consumidor ganhou a causa: a empresa daqui com o mesmo nome da empresa no exterior teve que consertar o produto adquirido lá fora. Mas, ainda não se pode afirmar ao certo se isso será uma tendência. Por ora, é melhor prevenir-se).

• Não pague à vista
Se você comprar via internet ou correio, condicione o pagamento do preço à entrega ou retirada do produto. O pagamento antecipado envolve risco, especialmente se o vendedor está localizado no exterior.

• Desistência
Quanto à desistência da compra do produto adquirido pelo correio ou através da Internet, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) garante a devolução no prazo de 7 dias, mas apenas para vendedores localizados no Brasil. Se você adquirir diretamente de fornecedor que está localizado no exterior, poderá ter dificuldade de fazer a devolução, pois nossa lei não se aplica ao caso.

• Peças de reposição
Outro item importante: muitos produtos importados não têm peças de reposição no Brasil. Em caso de quebra, não há como consertá-los. Muitos também não têm assistência técnica autorizada ou pessoal especializado que saiba lidar com eles. Isso tem sido muito comum com aparelhos celulares, cujos modelos são lançados lá fora, mas não chegam aqui. Uma vez como defeito, você pode acabar não encontrando ninguém que o conserte. Certifique-se, pois, adequadamente antes da compra.

• Compras no Brasil estão garantidas
Quando o consumidor, porém, resolve adquirir produtos estrangeiros através de um importador estabelecido no Brasil, ele está salvaguardado pelo CDC. Isso porque, segundo a lei, o importador responde pelos vícios e defeitos dos produtos, bem como pelos danos por eles ocasionados, estando sujeito ao pagamento de indenizações, troca dos produtos defeituosos, bem como devolução do dinheiro pago.

• Importador é responsável
É bom deixar claro que o importador não pode se recusar a atender o consumidor que dele adquiriu um produto defeituoso, sob a alegação de que ele é “apenas o importador”. Pela Lei, ele é o responsável pela qualidade do produto vendido.

• Bom para o país e para o bolso
Vê-se, por tudo isso, que muitas vezes vale mesmo a pena adquirir um produto nacional ou, no máximo, através de um importador. Além de contribuir para a economia do País, correm-se menos riscos.

07 julho 2008

A lei seca e o direito de locomoção de todos nós.

Dou hoje minha opinião, que será estritamente jurídica sobre a atual lei seca que está dando o que falar. Deixo claro desde logo que, sinto-me bastante à vontade para tratar do assunto do modo como farei, porque na minha coluna de 04 de fevereiro deste ano, aqui publicada, tinha elogiado a posição do Governo Federal em proibir a venda de bebidas alcoólicas à beira das estradas, como continuo acreditando que é preciso ir além: Penso que de deve proibir a venda desse tipo de bebida em supermercados, permitindo a venda apenas em locais específicos e autorizados em que só entrem maiores de idade; penso também que deve ser proibida toda publicidade de bebidas alcoólicas etc. O Estado deve mesmo fazer algo, mas sempre respeitando as garantias constitucionais de um verdadeiro Estado de Direito.
Quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta, sonhava -- todos nós sonhávamos -- um dia ver a democracia real instituída no Brasil.
A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a Constituição Federal de 1988, nossa esperança aumentou: afinal era o melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do túnel.
Muito bem. O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real Estado Democrático de Direito. Como estudante de direito já há 33 anos ficou triste e até, diria, um pouco descorçoado.
É incrível como o Poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu a mentalidade profundamente enraizada do autoritarismo
As ações policiais, por exemplo, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze, que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida dos cidadãos, que já tem muita dificuldade de se locomover pelas ruas das cidades.
Veja o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra os cidadãos de bem. A pessoa é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque acabou de sair de um restaurante. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que permite esse tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento perigoso, não há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem.
Há, apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um estabelecimento comercial ou nem isso: apenas porque está passando naquele local naquele momento. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício da cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É assombroso, para dizer o mínimo.
De onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que sai para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia de trabalho?
Dou exemplo de quando é possível a abordagem: se a pessoa entra cambaleando num veículo para dirigi-lo, eis o dado objetivo. Nesse caso o policial é testemunha ocular e tem o dever de agir. Ou, se o veículo faz zigue-zague na rua, é preciso pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples manter policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave ou o que seja e impedir que o ébrio entre no veículo.
Mas, se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente, não pode ser abordado e nem se lhe pode impingir conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto, como por exemplo, exigir o teste do bafômetro.
Eu digo isso, apenas e tão somente porque as leis não estão sendo cumpridas. Vamos à elas, então.
Em primeiro lugar, leia a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro CTB): “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Muito bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do que as autoridades policiais estão adotando. O Professor Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a interpretação do referido dispositivo.
Diz ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a segunda parte da regra legal (“sob influência de qualquer outra substância...”)_deve valer também para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois a disjuntiva “ou” remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte.
Dou também outra razão: A própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei, que passou a ter a seguinte dicção: “Art. 4º- A Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção.” (grifei)
Pergunto: o que significa “estar sob influência”? O professor Luiz Flávio Gomes responde: estar sob influência exige a exteriorização de uma fato, de um plus que vai além da existência do álcool no corpo.
No caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima, a direção em zigue-zague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera ingestão de álcool sem significar perigo concreto ainda que indeterminado, geraria tipo penal de um crime abstrato, algo inadmitido no direito.
E, em reforço lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da infração administrativa, o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: “dirigir sob influência do álcool”. Logo, se para a mera infração administrativa (que é o menos) há que se constata influência, para o crime (que é o mais) com muito maior razão.
Pergunto agora: Pode a polícia parar o veículo e submeter toda e qualquer pessoa ao exame do bafômetro? A resposta e não e por vários motivos. Primeiro, porque para abordar qualquer cidadão é preciso lei que autorize ou dado objetivo que permita. O direito de locomover-se livremente é assegurado constitucionalmente (Art. 5º, XV, CF).
Segundo, porque ainda que o motorista tenha ingerido álcool, isso não basta, pois deve se poder constatar um fato objetivo que gere perigo concreto, real decorrente de sua influência.
Terceiro, porque ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo. Se em algum caso, puder se constatar a influência do álcool por elementos exteriorizados objetivamente, então, nesse caso, a prisão há de ser feita com base em testemunhas e não mera suspeita infundada do policial ou por ordem direta de seus superiores que criaram uma suspeita em abstrato e geral.
Porém, digo mais. Guardado os limites de cada caso de abordagem, pode se dar outro crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade (ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09-12-1965). Dentre eles, destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física do indivíduo (art. 3º, “a” e “i”).
É um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por omissão, como demonstram, as várias decisões judiciais condenando administradores públicos em geral elencadas pelos Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro “Abuso de Autoridade” (Publicado pela Editora Revista do Tribunais, 9ª, ed, SP:2001).
Assim, se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou policial não pode levá-lo preso. O crime pode estar sendo cometido tanto pela autoridade que lhe prende, como pela que não lhe solta. É possível, pois, processar a autoridade pelo crime de abuso.
No assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação à quem está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo ordem superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem comete o crime é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar até mesmo ao Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o cumprimento estrito do sistema constitucional em vigor.
De todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse com todas as letras que “sendo exigível dos agentes da lei o conhecimento da garantia constitucional de que ninguém, salvo o flagrante, pode ser detido e preso a não ser por ordem da autoridade judiciária competente, seu descumprimento configura abuso de autoridade manifesto, que não exime de responsabilidade o superior e seus subordinados” (Decisão publicada na revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos irmãos Passos de Freitas).
O trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por policiais armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de bem estão sendo assaltados por bandidos armados. Em comum a violência e o abandono.
Afora o fato de que esse tipo de blitz acaba deixando um rastro. Quando elas cessarem, porque cessarão, deixaram no ar a possibilidade da ilegal abordagem de quem quer que seja e, nesse momento, os policiais menos escrupulosos aproveitarão para “engordar o caixa”. Mais um procedimento que facilita a corrupção. Outra coisa para se lamentar.

Não posso, como professor de Direito, depois de quase trinta anos de magistério, ficar tranqüilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que estude direito, porque ao invés de ver surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, o que assisto todo dia e cada vez mais é uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei maior, infelizmente, sua base.