A pergunta que o cidadão brasileiro tem feito mais uma vez nos últimos tempos é: “Afinal, como eleitor, num regime democrático, tenho ou não tenho direito de saber quem é que vota a favor de uma cassação e quem é que vota contra?”
A questão volta à tona e, sem dúvida, é relevante e legítima numa sociedade que se pretende democrática. Tentarei, pois, responder a essa questão muito simples: O voto secreto do parlamentar é legítimo?
• O mandato
O mandato é o ato jurídico através do qual alguém recebe de outrem — que lhe outorga — poderes para em seu nome agir. Quem dá os poderes é intitulado outorgante, mandante ou representado e quem recebe é chamado de outorgado, mandatário ou representante. O mandato pode decorrer de eleições, nas quais a coletividade (os eleitores) elege um representante ou pode ser feito de forma individual (ou mesmo em grupo por mais de uma pessoa) mediante um instrumento público ou particular (a procuração).
Trata-se, assim, de uma forma de representação, na qual o outorgado pratica atos em nome do outorgante e que terão repercussão concreta no mundo jurídico.
• Características
Dentre as características do mandato, uma delas é o “intuito personae”, que é aquela que diz respeito à idoneidade técnica e moral do mandatário, isto é, sua condição pessoal. Ou, em outras palavras, é fundamental que haja confiança entre os contraentes, especialmente do mandante ao mandatário: presume-se que em função da outorga, o mandante confia na capacidade pessoal do mandatário para exercer o mister para o qual foi nomeado.
Uma outra característica jurídica é a de que o mandato implica representatividade. O mandatário é o representante do mandante e quando age diante de terceiras pessoas, o faz em seu nome; representa-o, pois. Aliás, a propósito, o caráter de representação é típico nas entidades associativas e de classe, assim como nas Assembléias Legislativas, Câmara dos Deputados, Senado Federal etc.
• O conteúdo da representação
Coloco, agora, uma questão relacionada ao mandato quando ele envolve voto e seu conteúdo: está o mandante obrigado a definir o que ou em quem o mandatário deve votar? A resposta é não.
Como a própria delegação do voto é uma prerrogativa, seu conteúdo também o é. Logo, o mandante pode deixar a cargo do mandatário a definição do que fazer com o voto, a critério dele.
Por outro lado, é evidente que se no exercício do mandato o mandatário proferir voto na forma secreta, não será possível ao mandante conferir posteriormente se o encargo foi bem executado. Poder-se-ia dizer que quando isso ocorre — outorga para voto secreto — o outorgante abre mão de seu direito de exigir o bom cumprimento do mandato.
Portanto, se o mandante outorga poderes para o mandatário executar o voto na forma secreta, ele automaticamente renuncia ao direito que lhe assistia de conferir a exata execução de sua determinação.
Ou, explicando de outro modo: o aspecto “confiança”, elemento básico necessário para a validade jurídica do mandato, pode ser outorgado de tal maneira que o resultado real, prático e visível do exercício do mandato não possa ser checado pelo mandante.
• Direito individual X direito coletivo
Mas, acontece que esse “abrir mão” do direito de checar os atos do mandatário somente é válido quando se trate de direito individual, no qual a renúncia implica num ato de liberdade decorrente da prerrogativa pessoal do mandante (como quando, por exemplo, o pai outorga poderes ao filho para que este, em nome dele, administre seus bens).
A questão muda de figura quando o direito que está em jogo é coletivo, como no caso do mandato exercido pelo parlamentar. Mesmo que se quisesse, não poder-se-ia pensar que a população poderia abrir mão de um direito, como esse de checar a execução do mandato.
Com efeito, o mandatário do voto popular representa não só aqueles que nele votaram, mas toda a coletividade. O mandato quer seja de vereador, deputado ou senador é exercido em prol da comunidade. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, o voto proferido pelo parlamentar não lhe pertence. É que, tratando-se de um papel social público de representação, como é o do membro do legislativo, a pessoa nele investida quando por ele atua age em nome da população.
• Direito de vigilância
Ora, todo e qualquer cidadão tem o direito que decorre do exercício da cidadania, de não só saber como atua seu representante como cobrar dele as ações que entende adequadas. Afinal ele é eleito para exercer o “munus” público essencial do cargo.
Se no exercício desse cargo público ele agir secretamente, por exemplo, via voto secreto, suprime-se o sagrado direito da população de controlar seus atos.
• Pressão do cargo
É verdade que tem-se objetado que o voto secreto protege o parlamentar porque ele assim fica imune a pressões. Todavia, é preciso colocar que, em primeiro lugar, exercer cargo público tão relevante implica necessariamente a assunção do risco de se expor publicamente: é ônus do próprio cargo.
Depois, o que é mais importante: quem exerce esse tipo de cargo deve estar preparado para sofrer pressões, inclusive da população. Ele é mandatário da coletividade e por isso, deve estar sujeito à influência das pessoas, posto que isso é inerente ao pleno exercício de uma democracia. De nada adianta nomear um representante se não se pode saber o que ele está fazendo com o mandato outorgado.
• Voto aberto
O voto secreto, pois, viola a lógica do regime democrático e representativo do sistema eleitoral. É impossível para a coletividade controlar os atos de seu representante se ele os pratica às escondidas.
E mais: a garantia da liberdade de escolha conferida ao cidadão com seu voto secreto nas urnas durante as eleições públicas, inverte-se, passando a ser exatamente o contrário no caso do eleito: uma garantia de voto secreto possibilita acordos e ações desconhecidas em detrimento dos interesses do representado. E este, não tendo como controlar o resultado do exercício do mandato conferido, fica apenas com a palavra do mandatário, que, naturalmente, pode não ser expressão da verdade.
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