Muito bem. A opinião não tem compromisso com a verdade. Ela aparece como fruto do elemento subjetivo e a democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade.
Acontece que, algumas vezes, a opinião expressa apenas o desconhecimento a respeito do assunto. A pessoa que fala diz algo sem entender exatamente o que estava ocorrendo. Esse é o ponto de meu artigo de hoje. Eu li e ouvi muita opinião desinformada sobre questões de ordem legal em dois temas que foram destaque nos meios de comunicação na semana que passou: a "ficha suja" e o uso das algemas.
Veja-se o caso da chamada "ficha suja" dos candidatos às próximas eleições. O Supremo Tribunal Federal(STF) julgou, por nove votos a dois, improcedente o pedido da Associação dos Magistrados Brasileiro (AMB), que pretendia permitir que juízes eleitorais pudessem vetar a candidatura de políticos que respondam a processo judicial ou não tenham sido condenados em definitivo.
Segundo a decisão do STF, impedir essas candidaturas viola os princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, não podendo o Judiciário substituir o Legislativo e criar regras de inelegibilidade não previstas na Constituição e na Lei Complementar sobre a matéria.
Na questão das algemas, o STF decidiu, por unanimidade, que o uso indiscriminado das algemas é ilegal. Para que a mesma possa ser utilizada, há necessidade da existência de dados concretos que apontem que o preso pretende evadir-se ou demonstre periculosidade podendo causar danos a terceiros ou a si próprio. Repare: não foi proibido o uso das algemas; apenas se limitou seu uso ao estritamente necessário. Ora, ambas as decisões estão fundadas nas garantias constitucionais estabelecidas na Constituição Federal de 1988, que deveria ser motivo de orgulho de todos aqueles que lutaram para que um dia pudéssemos ter um verdadeiro Estado Democrático de Direito no país. Goste-se ou não, uma pessoa no Brasil somente pode ser considerada culpada após o julgamento definitivo do Poder Judiciário.
Isso vale para alguém que cometeu - realmente - um crime, como para aquele acusado que nada praticou de ilegal. A presunção de inocência é uma garantia fundamental num Estado Democrático. Ela não foi estabelecida para proteger criminosos, como às vezes se ouve dizer. Ela é uma garantia coletiva de todos nós; vale para todos os brasileiros e estrangeiros no país. Claro que nessa questão da candidatura a cargos públicos poderia haver algum tipo de limitação, mas isso depende de modificação legislativa.
Já no caso das algemas, a reação de algumas pessoas foi para mim uma surpresa. Pensei que fosse óbvio para o público em geral, que o uso de algemas somente pudesse se dar em casos necessários e não para todo e qualquer preso. A opinião pública, comunicada na palavra da população e na de pessoas dos meios de comunicação, às vezes traz à tona as boas intenções e uma insatisfação com a injustiça social, o que é compreensível. Mas, também nessa questão é preciso que saibamos que as garantias constitucionais valem para todos.
Colocar algemas em alguém não constitui pena. Por mais que aos olhos das pessoas o preso possa parecer desde logo culpado, como se faz nos julgamentos apressados e prévios da mídia, se ele não resiste à prisão, nem representa perigo para os que o vão prender ou para si próprio, usar algemas é um contra-senso e, naturalmente, viola seu direito como ser humano.
O voto do ministro Marco Aurélio Mello expõe todas as garantias constitucionais e legais que limitam o uso das algemas e mostra que não é de agora que o Poder Judiciário brasileiro tem proibido seu uso indevido. Lembra o ministro que já em 1996 o Superior Tribunal e Justiça decidiu que a "imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de direito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado". Lembra também que essa postura de respeito à pessoa remonta ao tempo do Império e perpassa pelo Século XX até os dias atuais.
Ou como apontou com muita percuciência o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ricardo Cardozo de Mello Tucunduva, "privar alguém da liberdade em nosso país sempre foi medida excepcional" e na questão das algemas o "Código Penal de 1890, a Consolidação das Leis Penais de 1932 e o Código Penal vigente não trataram do assunto. No Estado de São Paulo, o Decreto nº 4.405-A, de 17 de abril de 1928, que instituía o Regulamento Policial, estabelecia que só excepcionalmente, por questões de segurança, no preso poderiam ser empregados 'ferros, algemas ou cordas', sendo que o condutor, no caso de abuso, poderia ser multado, pela autoridade a quem fosse apresentado o preso"(artigo publicado no site Migalhas de 10-8-2008 - http://www.migalhas.com.br).
E como disse o ilustre Desembargador, "o emprego de algemas pressupõe que a prisão imposta a alguém seja legal, isto é, decorrente de flagrante delito ou de ordem judicial. Assim, prisão do tipo 'para averiguações', e acompanhada de uso de algemas, constitui duplo abuso de autoridade, passível de punição, nos termos da Lei de Abuso de Autoridade (nº 4.898/65)". Lei esta também apontada no voto do ministro Marco Aurélio e que, ironicamente, foi editada em pleno regime de exceção.
Estão aí, pois, os dois temas que, de algum modo, contrariaram o pensamento e a vontade de algumas pessoas, que, segundo penso, estão equivocadas. A luta pela manutenção do Estado Democrático de Direito deve ser de todos nós. As leis são estabelecidas em abstrato e não visam proteger este ou aquele cidadão. Pretendem dar guarida a todos, indistintamente.
Por melhor que sejam as intenções de quem acabe gostando de ver a imagem de outro algemado, é sempre bom que essa pessoa saiba que se um dia ele for processada somente poderá ser considerada culpada após o julgamento definitivo pelo Poder Judiciário, em cujo processo lhe seja assegurado defender-se dentro das regras do devido processo legal. É bom ela saber que só nesse momento ela poderá ser apontada como culpada.
E também é muito bom que ela saiba que se vierem lhe prender e ela não opuser resistência, deve ser conduzida com as mãos livres. Só assim se pode construir uma verdadeira democracia.
por Rizzatto Nunes
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