26 maio 2008

A oneomania ou doença das compras compulsivas.

O vício está nas manchetes. São dezenas de filmes que apresentam o drama de pessoas viciadas no jogo de cartas, em cassinos, no álcool e outras drogas, afora o noticiário que a todo momento mostra o drama do vício atingindo gente famosa ou gerando acidentes graves e crimes inacreditáveis.

No filme recém-lançado Conduta de Risco, George Clooney interpreta um advogado viciado em pôquer e que, por isso, passa uma série de necessidades; no também recente filme O sonho de Cassandra, Woody Allen escreve uma tragédia em que um dos personagens se endivida também no vício do pôquer, sempre alimentado por um agiota, pronto a lhe emprestar mais dinheiro para as apostas.

O vício é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. Um bom e incrível exemplo disso é o de um dos maiores escritores de todos os tempos, o russo Dostoiévski, que foi viciado nas roletas e nelas perdeu seus bens e amigos. Depois, como que para tentar exorcizar a doença, escreveu mais um maravilhoso livro, O Jogador.

Muito bem. Fiz essa introdução apenas para referir a gravidade do vício e tratarei de um, contemporâneo e fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, “mania de comprar” e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos.

A última Revista do Procon de São Paulo trás uma matéria sobre o assunto, dando um alerta aos consumidores. E, realmente, se uma pessoa tem essa doença age como um viciado e tem atitudes parecidas com as de qualquer um deles.

O comprador compulsivo é aquele que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ele pode literalmente comprar qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da compra. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra o satisfará.

O problema para identificar a doença está em que naturalmente esse tipo de comprador é um consumidor típico e, portanto, freqüenta os mesmos lugares que os demais. Daí, ele acaba comprando compulsivamente, mas os objetos são aqueles que todos compram, inclusive ele mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, cds etc e com isso, às vezes, nem ele nem os que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ele é exagerado ou uma espécie de colecionador.

O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo.

Como eu costumo dizer, parafraseando Descartes: “Consumo, logo existo”. Somos uma sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem adquirir.

No século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica.

Além disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro que se gasta quando se compra. Se você tivesse que pagar em dinheiro toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as moedas, “o peso” de sua perda. Você estaria trocando, por exemplo, alguns maços de papel moeda por um terno, um sapato ou uma bolsa. Você trocaria muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e você entregaria uma mala cheia dele para receber em troca um automóvel. Você “enxergaria” o quanto estava gastando.

Mas, o comprador não percebe isso. Ele simplesmente passa um cheque, que representa o dinheiro e que, sintomaticamente, ele nem possui concretamente, pois está no banco. Quer dizer, está num número numa conta. Nem no cofre da agência bancária está.

E o sistema financeiro foi ampliando essa ocultação. Num primeiro momento, então, como disse, o consumidor passa um cheque, que representa o dinheiro que ele possui. Mas, num segundo momento, por conta do sistema de créditos, ele passa um cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. É o cheque especial: o crédito que está lá à sua disposição para você usar. É como uma tentação dizendo “me usa” que eu te satisfaço. Ele age de forma similar ao agiota do filme de Woody Allen.

Isso é tão verdadeiro, que, com a “evolução” do sistema capitalista e seus modos de controle, estímulo e alienação dos consumidores, o cheque especial, que no início tinha de ser solicitado, atualmente é colocado na conta corrente -- é acoplado à ela --, sem que o cliente peça. Fica lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação ao consumo.

Mais, há mais. O sistema de cartão de crédito é outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim, mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente adquirir tudo o que existe. E o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro.

Na atualidade, com a espetacular incrementação da Internet, não só as compras tornam-se instantâneas e feitas de dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line (Docs e Teds), os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc, tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar.

Tudo isso, vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante.

Logo, o mercado insufla os “vírus” da doença que pode atingir qualquer um mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas.(Nem preciso falar da ampla utilização do cheque pré-datado que é uma marca brasileira, mas nem por isso menos perniciosa e que afeta sobremaneira o modo de compra e de endividamento).

É preciso, pois, tomar muito cuidado antes de fazer compras e assumir dívidas. E é importante também que todas as pessoas prestem atenção à atitude de compra e endividamento de seus familiares e pessoas queridas, para tentar detectar a doença.

Um sintoma freqüente está ligado ao endividamento. O comprador compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta.

É claro que, se o comprador com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos em sua casa ainda que nunca os utilize. Aliás, um modo de identificação da doença está em verificar o excesso da compra de produtos, que jamais são usados.

Encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias cidades brasileiras os grupos de auto-ajuda intitulado “Devedores Anônimos”, que funcionam nos mesmos moldes dos “Alcoólatras Anônimos”, que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à Internet para ter acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.

19 maio 2008

Crediário, empréstimo, descontos e promoções: cuidado para não ser enganado.

Hoje dou dicas para você não ser enganado nas compras pelo crediário e também nos descontos e promoções oferecidos pelos lojistas. Se você não se cuidar pode literalmente jogar dinheiro no lixo.

O empréstimo e o financiamento

Tanto o empréstimo quanto o financiamento estão ligados à idéia do crédito. Ter crédito na praça é fundamental na sociedade capitalista que vivemos. Por isso, os Serviços de Proteção ao Crédito são hoje muito conhecidos. As pessoas que estão neles negativadas ficam impossibilitadas de fazer compra à prazo.
É por isso também que esse tipo de cadastro negativo, que nasceu para fornecer dados para os comerciantes fazerem transações seguras, transformaram-se em verdadeiras “centrais de cobrança”: basta você atrasar alguma prestação para ser ameaçado de negativação ou ser efetivamente negativado. Mas, desse assunto de negativação tratarei outro dia. Continuo falando do empréstimo e do financiamento.
O empréstimo pessoal é a entrega de certa quantia em dinheiro, com a concessão de prazo para que esse dinheiro seja devolvido. A devolução do dinheiro é feita acrescida dos juros do empréstimo e pode se dar de uma só vez (um único pagamento) ou em parcelas. Estas podem ser mensais, bimestrais, semestrais etc.
Já o financiamento é uma espécie de crédito no qual um terceiro paga ao vendedor do produto ou do serviço adquirido pelo consumidor. Por exemplo, quando você compra um automóvel, o vendedor recebe o valor do preço e as parcelas do financiamento são pagas diretamente à financeira/banco.
Nesse caso, também, junto com as prestações você está pagando juros. Esses juros, chamados remuneratórios, são o rendimento que você paga para o banco ou financeira que entrega o dinheiro para você (no caso de empréstimo) ou paga o vendedor (no caso de financiamento). Esses juros são calculados na forma de percentuais calculados sobre o valor emprestado e pelo tempo do empréstimo.
O preço do empréstimo, portanto, corresponde a quantia de juros paga. É preciso fazer muito bem os cálculos para ver se vale a pena pedir empréstimos e fazer financiamentos, por causa das altas taxas de juros cobradas. E tome cuidado: às vezes, o vendedor/banco/financeira fazem propostas bastante atraentes mostrando taxas de juros bem baixas, mas em função do longo prazo ou do modo de fazer o cálculo (capitalizado) você acaba pagando muito de juros sem perceber. Veja abaixo o que eu falo dos crediários e saiba como calcular o quanto de juros você paga.
Claro que, se você necessitar fazer o empréstimo, fica sem alternativa. Porém, se o empréstimo e a compra puderem ser adiados, para uma compra com pagamento à vista, esse é o ideal.

O crediário

O crediário é uma modalidade de financiamento muito utilizada no comércio. Se você resolver comprar alguma coisa pelo crediário, tome algumas cautelas. Veja.
O maior problema nos crediários está relacionado ao quanto de juros se paga. Os vendedores sabem que o consumidor precisará fazer o crediário e sabem também que o comprador não faz o cálculo do custo total do preço, mas apenas verifica se o salário será suficiente para pagar a prestação mensal.
Daí, alguns desses comerciantes colocam o preço à vista mais alto que os normalmente praticados no mercado. Logo, o preço inicial já fica mais caro. Além disso, embutem os juros em prestações de longo prazo. Atualmente há crediários de 12, 24, 36 meses ou mais.
Eles se utilizam, também, de outras artimanhas. A publicidade enganosa é uma delas. Às vezes, o anúncio diz que ficou mais barato comprar porque a taxa de juros foi reduzida (por exemplo, de 5 para 4%) e o prazo para pagamento foi aumentado (por exemplo, de 12 para 24 meses). É um engodo: ao invés de pagar menos, o consumidor pagará mais, pois os juros totais pagos serão enormes. É verdade que a prestação é menor, mas o comprador estará pagando um montante muito maior a título de juros.
Por isso, anote: Não existe fórmula mais barata do que pagar à vista. Crie o hábito de poupar, juntar dinheiro, para depois pagar à vista. Você não perde o dinheiro dos juros e ainda por cima pode obter bons descontos, fazendo pesquisa de preços no mercado.
Aplicando na poupança ou noutro investimento seguro, na pior das hipóteses, você tem uma renda mensal aproximada aos índices inflacionários, além de pequena taxa de juros.

É verdade que, se você necessita do produto e somente pode pagar à prazo, fica sem alternativa. Porém, ainda assim calcule quanto está pagando. Descubra o menor preço à vista no mercado. Multiplique o valor da prestação pelo número de meses. Desse total, subtraia o preço à vista. O resultado é quanto você pagará de juros, ou seja, dinheiro jogado fora. Daí decida se vale a pena fazer o negócio.

Cuidado com descontos, promoções e formas de pagamento

Não compre “desconto”. Preocupe-se com o preço final do produto. Há comerciantes que fazem ofertas muito vantajosas, mas que são enganosas. Existem lojas que nunca anunciam o preço à vista. Você não consegue descobrir quanto custa, porque está sempre anotado: “com desconto de...”. Essas ofertas estão tanto nas vitrines, como nos anúncios das revistas, jornais, internet e malas diretas.
Algumas lojas fazem “promoções” o tempo todo; outras estão sempre em “liquidação”. Algumas usam essa “técnica” de vendas o ano inteiro! Não confie cegamente nisso.
Ora, se a promoção é permanente, então, na verdade, ela é falsa: é tática enganosa para atrair o consumidor pelo desconto e não pelo preço.
O percentual de desconto não significa nada. Dez, vinte, trinta, cinquenta porcento são apenas atraentes aos olhos. O que vale é quanto custa o produto realmente após o desconto, isto é, o que interessa mesmo é quanto você irá desembolsar.
Não se deixe levar: faça o cálculo do preço à vista, abatendo o valor correspondente ao desconto. Depois de obtê-lo, pesquise em outras lojas e veja se está mais barato mesmo.
Cuidado: há mais enganações. Por exemplo, existem anúncios que dizem: “Pague à vista com 20% de desconto ou em 3 vezes sem acréscimo”. Ora, se à vista tem desconto, quando você compra em três prestações, o valor do desconto está incluído. Logo, tem acréscimo sim.
Se for pagar com cartão de crédito, saiba que o preço à vista e no cartão tem de ser o mesmo. A loja não pode aumentar o preço para pagamento com cartão de crédito.
O cartão de débito é prático, mas não se esqueça de que o dinheiro sai diretamente de sua conta. Por isso, mantenha controle do saldo que você deve ter para pagar os cheques pré-datados emitidos, os débitos em conta que foram autorizados etc. Não é incomum acontecer do comprador pagar com cartão de débito e depois ficar sem saldo para honrar cheques pré-datados.


12 maio 2008

O uso indevido do bem público: o problema das calçadas.

Como diria Franco Montoro – um grande político --, vivemos no Brasil, no estado de São Paulo, Rio de Janeiro ou Minas Gerais, mas antes de mais nada, vivemos nas cidades. Vivemos nas casas e apartamentos, nos bairros, nas ruas e avenidas, nas Praças.

Esses logradouros públicos não pertencem ao político de plantão, sempre afoito por aparecer para manter a imagem e garantir votos, nem ao fiscal que eventualmente autorize indevidamente construções ou usos dos espaços públicos que, atendendo a interesses privados e comerciais, desnaturam a face da cidade em detrimento da vida social real, concreta das pessoas. Eles pertencem à população, que tem todo direito de ser ouvida toda vez que se pretende fazer alguma alteração arquitetônica, alguma demolição ou construção, alguma modificação que, de modo direto ou indireto, possa afetar a vida das pessoas que ali habitam.

É por isso que a Constituição Federal de 1988 (CF) estabelece que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182). E com base nessas diretrizes em também do art. 183 da CF, o Congresso Nacional em 2001 editou o Estatuto das Cidades (Lei 10.257), para regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Das várias normas estabelecidas no Estatuto das Cidades (EC), destaco aqui aquela que diz que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (inciso III do art. 2º).

Muito bem. Meu artigo de hoje concentra-se em apenas um pequeno, mais importante, pedaço do espaço urbano: as calçadas, também conhecidas como passeio e passeio público (termos usados pelo legislador). Parece pouco, especialmente numa cidade tão imensa com a Capital de São Paulo. Mas não é, conforme demonstrarei.

Vejamos, então. O Plano Diretor Estratégico (PDE) é instrumento global e estratégico da política de desenvolvimento urbano, determinante para todos os agentes públicos e privados que atuam no Município de São Paulo e foi instituído pela Lei 13.430 de 13-09-2002. A Lei Municipal nº 13.885 de 2004 estabeleceu normas complementares ao PDE para disciplinar e ordenar o uso e ocupação do solo do município. Agora, na seqüência, mostrarei como de lei em lei o direito dos cidadãos paulistanos acabou sendo reduzido.

O art. 116 do PDE dispõe expressamente que o “passeio, como parte integrante da via pública, e as vias de pedestre destinam-se exclusivamente à circulação dos pedestres com segurança e conforto” (grifei). E no mesmo artigo está dito que “a utilização dos passeios públicos e das vias de pedestres, incluindo a instalação de mobiliário urbano, deverá ser objeto de lei específica”.

E a Lei 13.885 no seu art. 6º, dentre outras coisas, diz que a execução dos passeios e a instalação do mobiliário urbano, independente da categoria de via em que estiver situado, deverão garantir maior acessibilidade e mobilidade dos pedestres, em especial dos portadores de necessidades especiais. Daí, em 19-05-2005 foi baixado o Decreto Municipal nº 45.904, apenas e tão somente para regulamentar esse art. 6º, ou em outras palavras, para regular o uso e ocupação das calçadas.

O Decreto repete que o “passeio público é a parte da via pública... destinada à circulação de qualquer pessoa,... com autonomia e segurança...” . (Art. 1º - grifei). E estabelece “princípios”, tais como o da acessibilidade, garantindo a mobilidade e acessibilidade para todos os usuários, assegurando o acesso, principalmente, de idosos e pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida; e o da segurança, dizendo que os passeios, caminhos e travessias deverão ser projetados e implantados de forma a não causar riscos de acidentes, minimizando-se as interferências decorrentes da instalação do mobiliário urbano, equipamentos de infra-estrutura, vegetação, sinalização, publicidade, tráfego de veículos e edificações.(art. 3º, incisos I e II).

O problema surge quando o legislador define o que seja “faixa livre” nas calçadas. Diz ele que a “faixa livre é a área destinada exclusivamente à livre circulação de pedestres, desprovida de obstáculos, equipamentos urbanos ou de infra-estrutura, mobiliário, vegetação, floreiras, rebaixamento de guias para acesso de veículos ou qualquer outro tipo de interferência permanente ou temporária...”. (art. 9º).

Mas, no inciso IV desse mesmo art. 9º estabelece que a calçada deve “possuir largura mínima de 1,20m (um metro e vinte centímetros)”.

E o que passou a acontecer na cidade de São Paulo? Vários estabelecimentos comerciais, afirmando que basta garantir a metragem de 1,20 de largura nas calçadas, passaram a invadi-las com seus objetos, cadeiras, mesas etc. Tomaram o bem público, que pertence a comunidade e dele se utilizam para seus interesses privados. E, às vezes, com autorização da própria fiscalização municipal, com base no estabelecido no Decreto citado.

Veja o que aconteceu: a garantia legal que começa firme e clara estipulando que a calçada destina-se exclusivamente à circulação de pedestres com segurança e conforto e que passando por outras definições legais estabelece acessibilidade a todos os pedestres, inclusive os portadores de necessidades especiais, termina, de fato, no reduzido espaço de 1,20 de largura.

Ora, em primeiro lugar, com decreto ou sem decreto, a natureza jurídica do passeio não muda: trata-se de bem público que não pode ser explorado livremente pela iniciativa privada para atender seus interesses comerciais. Depois, não é verdade que 1,20 de calçada possa realmente garantir conforto e segurança aos transeuntes. Imagine-se uma grande avenida com calçadas de apenas 1,20 de largura, ou ruas movimentadas ou mesmo parte dessas ruas movimentadas.

Penso que o grande equívoco do legislador é imaginar a cidade (e no caso as calçadas) em abstrato, equívoco, aliás, que não é incomum. Ele traça uma medida e diz: “isso basta”. Mas, a verdade é que não basta!

Um metro e vinte centímetros não oferece conforto aos pedestres. E também, claramente, não dá segurança. Pois o estabelecimento comercial toma para si o espaço da calçada próximo a seu imóvel, deixando o restante para os pedestres. Logo, aquele miúdo espaço estará sempre do lado da rua e invariavelmente quando mais de duas pessoas estiverem passando, uma estará no meio-fio, ou sobre a guia ou na sarjeta, com sério risco à sua segurança.

Não estou exagerando. Você mesmo, leitor, pode medir em sua residência. Um metro e vinte não permite sequer que se namore: um casal de mãos dadas quase não cabe nesse espaço. E também uma mãe com seu filho. Um pai com dois filhos, um de cada lado, nem pensar. E um casal de mãos dadas com o filho no meio também não. Mal dá para passear com o cão de estimação. Um pai empurrando o carrinho com seus filhos gêmeos fica espremido numa calçada com uma metragem dessas e não sobra espaço para mais ninguém. Crianças e adolescentes saindo juntos da escola ou outro local, certamente vão andar no meio da rua. E o que se dizer das pessoas portadoras de necessidades especiais?

Nossas calçadas estavam como sempre estiveram: mais ou menos bem e os problemas que surgiam eram rápida e eficazmente solucionados. Qual a necessidade desse regramento?

Afinal, é isso que se espera de uma cidade moderna? Civilizada? A permissão para que os comerciantes em seu exclusivo interesse privado se utilizem do espaço público, em detrimento das demais pessoas? Não só me parece inconstitucional como não contribui em nada para que se possa viver numa cidade harmônica e que possa ainda um dia ter mais beleza em sua superfície.

A lei não pode (e no caso, um decreto) simplesmente estipular um número e a partir daí permitir que o bem público possa ser explorado pela iniciativa privada, em função de interesses que nem sempre são os da comunidade. Alguns estabelecimentos comerciais conseguem aumentar sua área útil enormemente, tomando parte do bem público.

Além disso, para cumprir o comando constitucional e legal (ver acima a CF e o EC), antes da criação de norma que possa modificar a paisagem urbana em geral e no que respeita ao conforto e segurança das pessoas em particular, deve-se consultar os habitantes locais e seus representantes.

É preciso conhecer e respeitar os interesses da comunidade local, daqueles que moram nos arredores, habitam a região. Não se pode deixar, à guisa de interesses egoísticos meramente comerciais, que seja explorado o bem público em prejuízo de quem vive realmente na localidade.

O atendimento aos direitos da cidadania, não pode se dar apenas às pessoas que querem freqüentar o lugar, para nele usufruir o que se lhe oferecem, mas dando às costas às demais pessoas que ali residem. Aliás, é um dever de cidadania, de solidariedade e igualdade imposto a todos.

Pressupõe-se que todos os que freqüentam algum estabelecimento comercial, seja bar, restaurante, loja etc, também morem em suas casas, apartamentos, nas ruas e avenidas da mesma ou outra cidade. É preciso que esses freqüentadores tenham também consciência de que, às vezes, a atividade comercial importuna moradores que podiam muito bem ser eles mesmos.

Ora, se existe esse dever de cidadania, como existe é patente que o administrador público deve fazer de tudo para impor a ordem e a paz social, de modo a que todos sejam igualmente respeitados. Só se deve sacrificar uma parcela da sociedade local com obras que interessem a toda coletividade, quando não houver outra alternativa e a obra for imprescindível ao interesse público coletivo. E, claro, manter 1,20 metros de calçada para pedestres não é absolutamente o caso.

Alguns moradores, na cidade de São Paulo, têm se organizado para defender seus direitos, o que é muito bem vindo numa sociedade democrática. Com isso, têm conseguido algumas vitórias frente a ações de pessoas que exploram indevidamente a cidade, assim como diante de administradores públicos que não zelam pelo bem que pertence a todos e também diante de leis e decretos que violam seus direitos -- alguns muito antigos como esse de poder caminhar pelas calçadas da cidade com conforto e segurança.

Pois, como dizia Franco Montoro, que citei no início, somente se conseguirá viver numa cidade melhor (e, também quem sabe, num país melhor) quando, o real interesse das pessoas que moram nas casas e apartamentos, nas ruas, avenidas, praças, bairros etc puder ser respeitado.

05 maio 2008

O direito ao sossego: a difícil tarefa de obtê-lo.

Hoje cuido de um assunto não muito comentado: o direito que todos têm ao sossego, ao descanso, ao silêncio.

O interessante dessa garantia legal, é que ela é uma espécie de ausência; ela implica num obstáculo à ação das outras pessoas. Nos tempos atuais das grandes cidades e metrópoles ele se dá num “vazio”, numa falta, num espaço, digamos assim intocado.

Parece que nas sociedades industrializadas contemporâneas, nesta era capitalista globalizada que vivemos, tudo faz barulho e existe uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc.

Além disso, parece mesmo que todo o sistema é barulhento: nas ruas e avenidas o excessivo ruído dos veículos, das máquinas e das construções; do alto volume das máquinas nas fábricas, grandes e pequenas; nas oficinas, enfim, trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso.

É verdade que algumas pessoas até se acostumaram com isso e outras dizem que “gostam”, mas o fato é que barulho não solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde.

Não abordarei um aspecto importante dos sons não pedidos, como a imposição dos estabelecimentos comerciais de que seus freqüentadores escutem as músicas por eles escolhidas (o que, por exemplo, em academias de ginástica e musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo excesso de volume, como pela qualidade das músicas...). Tratarei do outro lado da questão: do direito ao silêncio, ao sossego e ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir.
O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e julgados pelo Poder Judiciário.

Por exemplo, o Judiciário já considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que faziam carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feito por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para som produzidos eletronicamente etc.

Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção.

Aliás, quero desde logo dizer que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação escancarada. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas.

Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo 42, estabelece pena de prisão para aquele que “perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda”.

Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo Decreto-Lei 24.645/1934 que dispõe que “Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz”. Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental, que é, sem dúvida, uma das mais modernas do mundo. A lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”

É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: “Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”

E o novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”.

Nesse ponto, anoto que para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si.

Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranqüilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras.

Se você está sofrendo esse tipo de dano, saiba que pode se defender, fazendo uma reclamação na Delegacia de Polícia, indicando o nome e endereço do infrator ou pode, também, propor ação judicial para impedir a produção do barulho, para o que deverá procurar um advogado de confiança. Nessa ação pode ser requerido que o barulho cesse, sob pena de fixação de multa e pode ser pedida também a fixação de indenização pelos danos morais já causados até aquele momento.