Consta que o trote estudantil nasceu nas Universidades européias na Idade Média. Tendo em vista o terrível baixo nível de higiene da época, por razões profiláticas, isto é, para evitar doenças e sua proliferação, raspava-se a cabeça dos alunos ingressantes (os calouros) e muitas vezes queimava-se suas roupas. Essas questões, inicialmente, higiênicas, muito provavelmente influenciadas pelo grau de selvageria reinante, já no século XIV, nas Universidades de Bolonha, Paris e Heidelberg, haviam se transformado em rituais bárbaros claramente sadomasoquistas: Os veteranos arrancavam pelo e cabelos dos calouros, que muitas vezes eram obrigados a ingerir urina e comer excrementos. (Fatos observados em Faculdades de Medicina no Brasil do Século XX!).
Em Portugal, há relatos de trotes violentos no Século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980 um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990 morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina.
O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Lembro que quando ingressei na Faculdade nos idos de 1976, nós estudantes já pensávamos que aquilo era um jeito muito estranho de dar boas vindas. Não só eu, mas muitos de nós, achávamos uma contradição os jovens ingressarem na faculdade -- um restrito setor da elite brasileira – e se mostrarem tão mal educados: ao invés de agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agiam como bárbaros, arrogantes e sádicos. Os trotes eram generalizados, sendo praticados em quase todas as escolas.
Felizmente, isso mudou: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes violentos e violadores, como vários Centros Acadêmicos (CAS), cônscios de suas responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades também os combatem. Muitas escolas e CAs, por exemplo, substituíram esse tipo de delito pelos chamados “trotes solidários”: organizam festas de recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem doados à Instituições de Caridade. Conheço escolas em que os veteranos montam grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária, mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes etc. Isso é mesmo muito bom.
Todavia, infelizmente, nesta semana foi possível verificar-se pelas ruas de São Paulo que ainda se pratica a céu aberto o trote violento – física, moral e psíquicamente – com a conivência das autoridades e escolas. Para quem não sabe, esse tipo de prática é criminosa e está prevista em nossa legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar ressarcimento na esfera cível. Veja.
Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, como as que acima apontei, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes.
Pois bem. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.
Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo “cavalgada” (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrar o calouro, faze-lo gatinhar pelas ruas, faze-los andar um colado no outro como uma centopéia e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP).
Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime é qualificado e tem a pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe o crime pode ser caracterizado como de tentativa (art. 14, II do CP).
Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente.
Um ponto merece destaque: o da participação das Escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas deles, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é do interesse e responsabilidade deles. Mas, não é bem assim.
Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. Esse ponto, é verdade, é discutível especialmente quando o evento ocorre fora do campus. No entanto, é preciso lembrar que o mínimo que a Escola pode fazer é proibir o trote e nos primeiros dias de aula distribuir avisos pelo campus e para os calouros dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. A denúncia dos calouros e a punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões têm funcionado muito bem onde praticado. A punição exemplar é, nesses casos, muito eficaz.
Não se deve esquecer que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se proteger. É preciso que eles possam gritar e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que muitos trotes são feitos em praça pública (literalmente), ruas e avenidas.
Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de direito, medicina, sociologia, engenharia etc possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes trogloditas que modernos estudantes universitários. É verdade que trata-se de uma minoria, aliás e talvez a mesma minoria que anos depois, no período da formatura, faz os “bota-foras” violentos.
Em Portugal, há relatos de trotes violentos no Século XVIII na Universidade de Coimbra. Tudo indica que os estudantes da elite brasileira que lá estudaram tenham importado a prática para o território nacional. A ignorância e a bestialidade do ritual fez sua primeira vítima fatal no ano de 1831, com a morte de um estudante da Faculdade de Direito de Olinda. Os trotes, assim como os crimes e as mortes continuaram por todo o século XX: em 1980 um calouro de um curso de jornalismo foi morto por traumatismo cranioencefálico em Mogi das Cruzes; em 1990 morreu de parada cardíaca um calouro do curso de direito em Goiás; em 1999, um calouro de medicina da USP morreu afogado em uma piscina.
O trote estudantil, humilhante e selvagem, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Lembro que quando ingressei na Faculdade nos idos de 1976, nós estudantes já pensávamos que aquilo era um jeito muito estranho de dar boas vindas. Não só eu, mas muitos de nós, achávamos uma contradição os jovens ingressarem na faculdade -- um restrito setor da elite brasileira – e se mostrarem tão mal educados: ao invés de agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agiam como bárbaros, arrogantes e sádicos. Os trotes eram generalizados, sendo praticados em quase todas as escolas.
Felizmente, isso mudou: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes violentos e violadores, como vários Centros Acadêmicos (CAS), cônscios de suas responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades também os combatem. Muitas escolas e CAs, por exemplo, substituíram esse tipo de delito pelos chamados “trotes solidários”: organizam festas de recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem doados à Instituições de Caridade. Conheço escolas em que os veteranos montam grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária, mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes etc. Isso é mesmo muito bom.
Todavia, infelizmente, nesta semana foi possível verificar-se pelas ruas de São Paulo que ainda se pratica a céu aberto o trote violento – física, moral e psíquicamente – com a conivência das autoridades e escolas. Para quem não sabe, esse tipo de prática é criminosa e está prevista em nossa legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar ressarcimento na esfera cível. Veja.
Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, como as que acima apontei, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes.
Pois bem. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.
Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo “cavalgada” (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrar o calouro, faze-lo gatinhar pelas ruas, faze-los andar um colado no outro como uma centopéia e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP).
Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime é qualificado e tem a pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe o crime pode ser caracterizado como de tentativa (art. 14, II do CP).
Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente.
Um ponto merece destaque: o da participação das Escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas deles, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é do interesse e responsabilidade deles. Mas, não é bem assim.
Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. Esse ponto, é verdade, é discutível especialmente quando o evento ocorre fora do campus. No entanto, é preciso lembrar que o mínimo que a Escola pode fazer é proibir o trote e nos primeiros dias de aula distribuir avisos pelo campus e para os calouros dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. A denúncia dos calouros e a punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões têm funcionado muito bem onde praticado. A punição exemplar é, nesses casos, muito eficaz.
Não se deve esquecer que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se proteger. É preciso que eles possam gritar e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que muitos trotes são feitos em praça pública (literalmente), ruas e avenidas.
Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de direito, medicina, sociologia, engenharia etc possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes trogloditas que modernos estudantes universitários. É verdade que trata-se de uma minoria, aliás e talvez a mesma minoria que anos depois, no período da formatura, faz os “bota-foras” violentos.
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