18 fevereiro 2008

Em pleno século XXI os trotes continuam.

Em pleno século XXI os trotes continuam

Quando ingressei na Universidade em 1976, na PUC/SP, os veteranos, homens e mulheres, ainda maltratavam os calouros na pratica do chamado trote: um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades.

Naquela época eu pensava que aquilo era um modo muito estranho de dar boas vindas. Não só eu, mas muitos de nós, achávamos uma contradição os jovens ingressarem na faculdade -- um restrito setor da elite brasileira – e se mostrarem tão mal educados: ao invés de agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agiam como bárbaros, arrogantes e sádicos. Os trotes eram generalizados, sendo praticados em quase todas as escolas.

Felizmente, isso mudou: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes violentos e violadores, como vários Centros Acadêmicos, cônscios de suas responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades também os combatem. Muitas escolas e CA, por exemplo, substituíram esse tipo de delito pelos chamados “trotes solidários”: organizam festas de recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem doados à Instituições de Caridade. Conheço escolas em que os veteranos montam grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária, mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes etc. Isso é mesmo muito bom.

Todavia, infelizmente, nesta semana foi possível verificar-se pelas ruas de São Paulo que ainda se pratica a céu aberto o trote violento – física, moral e psíquicamente – com a conivência das autoridades e escolas. Para quem não sabe, esse tipo de prática é criminosa e está prevista em nossa legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar ressarcimento na esfera cível. Veja.

Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que tornaram-se publicamente conhecidos, como o da década de noventa passada num campus do interior do Estado de São Paulo, onde veteranos jogaram ácido no rosto de duas calouras provocando queimaduras graves ou do calouro que morreu na piscina da USP, crimes graves e que efetivamente restaram investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes.

Pois bem. Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro ou da caloura contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.
Humilhar o calouro ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo “cavalgada” (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrar o calouro, faze-lo gatinhar pelas ruas, faze-los andar um colado no outro como um centopéia e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP).
Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre) o crime é qualificado e tem a pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe o crime pode ser caracterizado como de tentativa (art. 14, II do CP).
Haverá outros crimes que possam ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado com incurso em mais de um crime simultaneamente.
Um ponto merece destaque: o da participação das Escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fossem problemas deles, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é do interesse e responsabilidade deles. Mas, não é bem assim.
Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. Esse ponto, é verdade, é discutível especialmente quando o evento ocorre fora do campus. No entanto, é preciso lembrar que o mínimo que a Escola pode fazer é proibir o trote e nos primeiros dias de aula distribuir avisos pelo campus e para os calouros dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. A denúncia dos calouros e a punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões tem funcionado muito bem onde praticado. A punição exemplar é, nesses casos, muito eficaz.
Não se deve esquecer que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se proteger. É preciso que eles possam gritar e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que muitos trotes são feitos em praça pública (literalmente), ruas e avenidas.
Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, Medicina, Sociologia, Engenharia etc possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes trogloditas que modernos estudantes universitários. Será que os anos restantes de escola retiram deles a fúria delituosa, a vontade de humilhar seu próximo? Espero que sim, mas tenho minhas dúvidas.

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