Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicou a Lei nº 11.672, que é conhecida como a lei dos recursos repetitivos, e determinou a suspensão dos casos em tramitação que envolvem uma importante área do direito: a dos contratos bancários, um dos mais expressivos em termos de volumes de ações judiciais e também de dinheiro envolvido.
Pelo sistema dessa lei, deverá haver suspensão dos processos em grau de recurso julgados pelos Tribunais estaduais e federais de todo o país (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais) que envolvam os contratos bancários. O intuito da lei é unificar decisões que envolvam idêntica questão de direito, isto é, ela pretende que se trate de modo uniforme os múltiplos recursos que cuidem do mesmo tema jurídico-legal. No caso, trata-se das discussões envolvendo os juros dos empréstimos (chamados de remuneratórios), o da capitalização desses juros, a questão da mora pelo atraso no pagamento, a cobrança da comissão de permanência, da multa etc.
Esses temas têm sido discutidos nas milhares de ações existentes. Alguns deles foram analisados e tornados praticamente indiscutíveis, como por exemplo, o que trata da multa pelo atraso nas prestações que não pode ser superior a 2%, até porque previsto expressamente no Código de Defesa do Consumidor. Outros, todavia, preocupam, uma vez que, apesar de toda a luta dos consumeristas, ainda remanesce muita divergência e dependendo do que for decidido pode haver muitas perdas para os consumidores.
Dentre esses, tratarei dos juros dos empréstimos. A pergunta que se faz é: eles podem ou não ser capitalizados? A diferença da resposta entre o sim e o não pode literalmente, em alguns casos, significar a salvação ou a bancarrota do consumidor.
Como se sabe, a taxa dos juros dos empréstimos, financiamentos, cheque especial etc podem ser calculados de forma linear (não cumulativa) ou de forma capitalizada (calculados os juros atuais sobre os anteriores, cumulativamente). Em períodos longos, a diferença entre os dois modos de calcular os juros é realmente extraordinária.
Muito bem. Os Tribunais brasileiros têm afastado a capitalização e os bancos sempre lutaram para implementá-la. Dada a notícia da decisão da suspensão dos processos que envolvem o tema dos contratos bancários pelo STJ, logo houve pronunciamentos dizendo que o STJ já decidiu que a capitalização dos juros pode ser feita, a partir da edição da Medida Provisória (MP) 2.170-36 de 23-08-2001, desde que expressamente prevista no contrato. É verdade. No entanto, quero demonstrar outro aspecto dessa MP que não pode passar despercebido, inclusive por parte daqueles que irão se manifestar junto ao STJ, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil ou o IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.
Falo de um aspecto específico relativo ao nascimento da MP referida e que, na parte do regramento da possibilidade de capitalização dos juros é ilegal e, via de conseqüência, inconstitucional.
A questão é a seguinte: A citada Medida Provisória viola a Lei Complementar (LC) nº 95/98 e, conforme demonstrarei, por isso não pode ser utilizada nesse ponto da capitalização. Com efeito, a LC 95 é verdadeira lei geral de elaboração e consolidação das leis no Brasil, conforme dispõe seu art. 1º: ”A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar. Parágrafo único. - As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no artigo 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo”.
Editada em 26 de fevereiro de 1998, um de seus objetivos principais era, como é, o de evitar o que se acostumou apelidar de “engodo do legislador”, que pretendendo regular um assunto, colocava “escondido” dentro da uma lei, um outro assunto totalmente desconectado.
Veja o que diz seu art. 7: “O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa”.(grifei).
Pois bem, pergunto agora qual o objeto da MP 2170-36? Veja você mesmo: "Art. 1º. Os recursos financeiros de todas as fontes de receitas da União e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma regulamentada pelo Poder Executivo”.
Aliás, é exatamente o que diz sua epígrafe: “Dispõe sobre a administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, consolida e atualiza a legislação pertinente ao assunto e dá outras providências”.
É uma MP que tem apenas oito artigos e feita para cuidar da caixa do Tesouro Nacional. Mas, eis que de repente, escondido, entre esses artigos aparece o art. 5º caput que, perdido no contexto, diz: “Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano”.
Ora, o art. 5º da MP acabou regulando matéria completamente diversa da fixada pela própria MP, permitindo a capitalização de juros no Sistema Financeiro Nacional. Está, pois, evidenciada a ilegalidade do processo legislativo que a produziu. Portanto, esse art. 5º padece de vício de inconstitucionalidade na parte que não cumpre a determinação da Lei Complementar 95/98, razão pela qual não há que se falar em possibilidade de capitalização dos juros.
Lembro em complemento que, o que vige em matéria de juros remuneratórios é o art. 591 do Código Civil que só permite sua capitalização anual.
Por fim, anoto que o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que, realmente, o art. 5º da MP 2170-36 não tem validade por vício no processo legislativo (Para quem tiver interesse, o acórdão está publicado na íntegra no site : www.beabadoconsumidor.com.br).
por Rizzatto Nunes
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